terça-feira, 28 de janeiro de 2014

A gostosa do 602

Se os mortos descansam a sete palmos de terra, a situação é um tanto diferente 6 andares acima. Na verdade, do térreo ao décimo andar deste edifício, descanso é algo que acontece apenas segundas, quartas e sextas - e em horário comercial.

602.

Seis - zero - dois.

Imagina a garota mais deliciosa que você viu na vida. Agora dá zoom... Um pouquinho mais... Vai, pode ir mais. Agora observa, cuida cada detalhe atentamente.
Cabelos, orelhas, olhos, sorriso, nariz.
Nada disso importa, de fato. O melhor está mais abaixo.
Peitos que mais parecem pêras suculentas e macias, cinturinha e aquela bunda.
Cara! Aquela bunda. Não existe coisa igual.

Essa sou eu, imaginando meu simpático namorado apresentando a vizinha aos amigos.

Patético.

Algumas vezes por semana um grupo de 5 a 10 caras se reunem no apartamento do Pedro pra jogar Playstation. Pelo menos, era o que faziam até o fatídico abril deste ano.

O nome dela até hoje - quatro meses depois - ninguém descobriu.
Nem mesmo o porteiro sabe. o que não é bem um problema, pois a moça já tem como ser identificada. A gostosa do 602.

A mudança dela para o prédio (que, inclusive, é o mesmo onde moro), trouxe algumas alterações na rotina dos exemplares masculinos daqui.

Se antes atividades como colocar o lixo na rua, passear com o cachorro ou ir ao supermercado eram problemas dos 8 aos 80 anos, hoje não mais.

Mas não se iluda, meu amor. Segundas, quartas e sextas, das 8h às 19h, as coisas ainda funcionam como antigamente.

Beleza, bunda, peitos e discrição eram abundantes na Vaca do 602.
Confesso que eu e muitas outras vizinhas passamos a nos acotovelar pelo direito de conferir a caixa de correspondência com nossos pais, filhos, namorados, amantes, enfim.

Todos acompanhavam cada passo dela.
O estalar do seu salto nas terças e quintas e o perfume floral eram rotina no prédio pela manhã.
À noite, a nota do perfume era mais intensa, ao contrário do caminhar, que ganhava ritmo mais "dançoso" e suave.
O tilintar das chaves no chaveiro com a Torre Eiffel eram igualmente reconhecíveis. Cada passada, a procura pela chave no fundo da bolsa, o tempo em que gira a primeira volta e, 27 segundos depois a segunda, são obras primorosas de Deus, Buda, Alá, whatever.

Curiosamente, meu pai corria para verificar a trava do carro neste exato momento. O cretino do Pedro andava para um lado, girava para o outro e descia para comprar Coca-Cola, ajudar alguma senhorinha com as compras. Qualquer coisa.

A verdade é que nós, mulheres, não tínhamos muito o que fazer. Estávamos nós mesmas apaixonadas pela Vaca-Gostosa do 602.
Era como uma epidemia de filme americano. E em como todo filme de epidemia, tinha de haver alguém não-vulnerável ao vírus, que desenvolveria uma vacina mágica e nos salvaria da zumbilândia.

Esse alguém chava-se Argelindo. Argelindo Mudanças.
E vinha com o adesivo de "Deus é fiel", logo acima de "Veículo guiado por Jesus".

Oito meses depois de sua chegada, sem qualquer tipo de anúncio, o caminhão parou na porta do Edifício Piazza Navona e levou consigo o coração - e a bunda e peitos - de cada um de nós.

Argelindo. Nosso salvador. Amém.

Sem grandes perdas, voltamos todos para a vida de vivos-vivos.

Infelizmente, quase todos.
O casamento de 57 anos do Seu Joaquim e da Dona Florisbela não resistiu às finas paredes que separavam o 601 do 602.

Dona Flor foi embora, com malas em punho. Não saberia mais como viver ali sem Sheyla, a garota da porta ao lado.

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